Como organizações que existiam à margem da vida pública do Brasil ajudaram a moldar os destinos do país desde seu nascimento
TEXTO Paulo Rezzutti | 17/10/2014 15h55
Às vésperas da Independência do Brasil, dom Pedro I enviou de
São Paulo uma carta ao seu amigo e ministro José Bonifácio. No final,
cravou um pedido misterioso: “Recomende-me aos senhores nossos II e CC
(...)”.
Essa simples frase, cheia de pontos em formatos estranhos,
revela o contato estreito do então príncipe regente, a pouco tempo de
virar o primeiro governante do Brasil independente, com duas sociedades
secretas operantes durante o processo histórico que culminou no 7 de
Setembro. Os três pontos, cada um no que seria um vértice de uma
pirâmide, antecedidos por duas letras “i”, são ainda hoje utilizados por
membros da Maçonaria e significam “irmãos”. Se essa primeira sociedade
permanece conhecida no mundo inteiro, a seguinte, que se revela nas duas
letras “c” seguidas por quatro pontos em forma de cruz, que
significavam “camaradas”, foi uma ordem secreta 100% brasileira que teve
vida efêmera. Tratava-se do “Apostolado da Nobre Ordem dos Cavaleiros
da Santa Cruz, ou, simplesmente, Apostolado.
A Maçonaria e o Apostolado na independência
Dom
Pedro foi iniciado na Maçonaria em 2 de agosto de 1822, adotando o nome
de Guatimozin, o último imperador asteca que tentou resistir aos
invasores espanhóis. Nesse período, a partir de 1821, com a campanha de
emancipação política do Brasil, as lojas existentes começaram a ter um
papel político mais vigoroso, embora já existissem registros de
atividades maçônicas no Brasil desde o século 18. Em 1822, durante o
processo da Independência, foi criado o Grande Oriente do Brasil, ou
Brasiliano, conforme ata de 17 de junho, com o qual a Maçonaria
brasileira libertou-se e tornou-se independente do Grande Oriente
Lusitano.
Inspirado
pelos ventos da Revolução Francesa, da independência da América do
Norte e das Guerras Napoleônicas, que varreram por algum tempo da Europa
o absolutismo, a Maçonaria brasileira tentava atrair o então príncipe
regente. Se alguns elementos maçônicos sonhavam com a implantação da
República no Brasil, a maioria achava que a independência definitiva de
Portugal se daria de maneira menos traumática se contasse com a simpatia
de dom Pedro, por isso buscou envolvê-lo na causa.
Foram os
maçons, capitaneados por Joaquim Gonçalves Ledo e José Clemente Pereira,
presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, que se movimentaram
para dissuadir dom Pedro de cumprir as ordens das Cortes Portuguesas,
que solicitaram o retorno dele à Europa em 1821. Inclinado a respeitar
as diretrizes das Cortes, o príncipe regente foi convencido pelo
movimento de Ledo e Pereira, que conseguiram a adesão de representantes
de Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Bahia ao pedido para que
não deixasse o Brasil, levando ao Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822.
Em 13 de maio, a Maçonaria concedeu a dom Pedro o título de “Protetor e
Defensor Perpétuo do Reino Unido do Brasil”, o qual o príncipe declinou
parcialmente, aceitando apenas o de “Defensor Perpétuo”.
O
Apostolado da Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz foi fundado por José
Bonifácio em 1822, com o objetivo de defender a integridade do Brasil e
lutar por sua independência. Porém o propósito primordial era combater o
grupo de Gonçalves Ledo, que, se a princípio havia aceitado a monarquia
constitucional como caminho rápido para a separação, acalentava o sonho
republicano.
Tanto a Maçonaria como o Apostolado acabaram sendo,
cada um a seu tempo, fechados por ordem de dom Pedro. Mas a influência
das duas sociedades secretas no processo político da Independência é
inegável. Das reuniões do Apostolado entre janeiro e março de 1823, como
mostram as atas reunidas no Acervo Histórico do Museu Imperial, em
Petrópolis, há debates de artigos que seriam apresentados ao projeto da
Constituição do Império em setembro pelo deputado Antônio Carlos, irmão
de Bonifácio.
O escritor Luiz Gonzaga da Rocha, presidente do Tribunal Distrital de Justiça do Grande Oriente do Distrito Federal e autor de A Bucha e Outras Reminiscências Maçônicas,
afirma que as sociedades secretas perderam poder. “A Maçonaria exerce
pouca ou quase nenhuma influência na sociedade brasileira”, diz. Segundo
Rocha, isso ocorre devido ao baixo índice de inserção social e ao fato
de a sociedade estar afastada do cenário político-econômico-social e das
discussões das questões de interesse nacional.
A ação da Bucha
“É
a polícia, ninguém se mexa!”, disse, triunfante, o subdelegado Armando
Pamplona para um bando encapuzado. Eram os anos finais da Primeira
Guerra, e Pamplona buscava espiões alemães. Certa noite, passando a
altas horas pelo antigo prédio do Liceu de Artes e Ofícios em São Paulo,
notou uma estranha movimentação. Diversos senhores com ar misterioso
tomavam carros de luxo estacionados nas redondezas do edifício.
Decidido, o subdelegado resolveu montar uma campana para descobrir do
que se tratava.
A persistência deu resultado. Certa noite, por
volta das 9 horas, vultos suspeitos se esgueiravam para dentro do
edifício. Já passava das 10 horas quando o movimento terminou. O
subdelegado chamou seus homens e invadiu o local. Pamplona deve ter
achado esquisito aqueles homens trajando mantos e faixas bordadas. Uns
traziam no peito uma âncora verde, símbolo da esperança, outros um
coração vermelho, lembrando a caridade, alguns, a cruz azul da fé.
O
subdelegado estava radiante com a perspectiva de ter “explodido” um
ninho de perigosos espiões. Mas qual não foi sua surpresa quando os
membros da assembleia, perplexos diante daquela invasão, começaram a
tirar os capuzes. Armando reparou que os rostos eram familiares: ele
conhecia pessoalmente alguns daqueles senhores, outros de vista, outros
por fotos em jornais. Estavam no salão o governador do estado, Altino
Arantes, diversos políticos paulistas, mineiros, cariocas e gaúchos,
além de inúmeros professores das Faculdades de Direito, de Medicina e
Politécnica, assim como o secretário de Segurança Pública, Elói Chaves,
chefe de Pamplona. Invertendo a ação, Chaves deu ordem de prisão ao
subdelegado e a seus homens.
Naquela mesma noite os policiais
invasores foram juramentados e ameaçados severamente pelas altas
personalidades ali reunidas. Assim terminou a grande noite do
subdelegado Pamplona; em vez de uma batida e a prisão de espiões, a fama
e a glória estampadas nos jornais matutinos, ele acabou se tornando, à
força, membro juramentado da Bucha, a sociedade secreta que, para
muitos, por quase cem anos ajudou a governar os destinos do Brasil.
Em
11 de agosto de 1827, o imperador dom Pedro I assinou a lei que criava
os cursos jurídicos no Brasil. Ela previa a instalação de duas
faculdades, uma em Recife e outra em São Paulo. A paulista foi a
primeira a entrar em funcionamento. Instalada em parte do antigo
Convento de São Francisco, as arcadas do velho claustro se tornaram
sinônimo da recém-instalada academia. A lei de 11 de agosto também
institucionalizou os Cursos Anexos, espécie de preparatório que
capacitava os jovens a prestarem os exames de admissão à faculdade.
Júlio Frank
Nos
Cursos Anexos, houve, entre tantos outros, dois importantes mestres
estrangeiros de índole liberal: o professor de aritmética, o italiano
Líbero Badaró, assassinado por suas ideias em 1830, e o alemão Johann
Julius Gottfried Ludwig Frank, ou Júlio Frank, como era conhecido no
Brasil. Frank, nascido em 1808, havia estudado na Universidade de
Göttingen, mas não chegou a se formar. Teve que sair da cidade por causa
de dívidas contraídas e veio parar no Brasil. Tentou se estabelecer no
Rio de Janeiro, depois no interior de São Paulo, e por fim na capital.
Frank
morreu de pneumonia em 1841 e, como não era católico, seu corpo teria
de ser sepultado no Cemitério dos Aflitos, local que recolhia
indigentes, criminosos mortos na forca e escravos. Um ultraje para o
venerado mestre. Os estudantes, em revolta, resolveram enterrar seu
professor na própria escola. Seu túmulo, em um dos pátios, é venerado
pela tradição acadêmica da faculdade até hoje.
Inspirado nas Burschenschaften,
ou Confrarias de Camaradas, instituições acadêmicas alemãs, Frank teria
tido, durante uma reunião com o estudante Vicente Pires da Mota e o
secretário de Governo da província de São Paulo, Pimenta Bueno, a ideia
de criar uma associação similar na Academia de Direito. Segundo o
escritor Luiz Gonzaga da Rocha, “a Bucha tinha por objetivo a
filantropia e, ainda, ressaltar a função social do advogado no seio da
sociedade paulistana e brasileira, por extensão”.
Controle
Os integrantes da Bucha, Bucha Paulista, ou B. P., como passaria a ser chamada a Burschenschaft
da Academia de Direito de São Paulo, eram escolhidos pela sua
inteligência e lisura de caráter. Na faculdade, a ordem era composta de
Catecúmenos, Crentes e Doze Apóstolos; fora, por Chefes Supremos e
Conselho dos Divinos. A estrutura da sociedade, com o passar dos anos,
transcendeu os velhos muros da academia e passou a permear a política
nacional, envolvendo a estrutura burocrática do Estado.
Os antigos
alunos da São Francisco que pertenciam à Bucha e ocupavam posições nas
diversas esferas do poder nacional acabaram favorecendo outros membros
da organização na distribuição de cargos governamentais. O historiador
Luis Fernando Messeder dos Santos, autor da dissertação de mestrado A Burschenschaft e a Formação da Classe Dirigente Brasileira na República Velha,
afirma a respeito: “Percebe-se o fortalecimento da atuação da
organização na década de 1870, quando alguns dos que iriam ocupar a
‘suprema magistratura’ do país durante a Primeira República estudaram na
mesma turma”.
Durante o Império, entre os “bucheiros”, havia
políticos, artistas e intelectuais destacados, como Castro Alves,
Álvares de Azevedo, o Barão do Rio Branco, o Visconde de Ouro Preto,
entre outros. Após a queda do Império, em 1889, foi instituída uma
comissão, apelidada de Comissão dos Cinco, encarregada do anteprojeto da
Constituição Republicana. Dos cinco membros da comissão, três eram
conhecidos bucheiros: Saldanha Marinho, Américo Brasiliense e Santos
Werneck.
Embora os ideais liberais levados para as Arcadas por
Líbero Badaró e Júlio Frank tenham servido de norte para a criação da
Bucha, inspirando seus membros a lutarem pelo abolicionismo e pela
República, à medida que os ardores juvenis arrefeciam e seus integrantes
passavam a pertencer ao establishment, alguns transformaram-se em
conservadores, defendendo a monarquia e a escravidão.
Na República
Velha, acredita-se, não havia ministro, juiz ou mesmo candidato à
presidência da República que tomasse posse, ou fosse indicado, sem
prévia deliberação do Conselho dos Divinos. A filantropia inicial, a
ideia de ajuda mútua, acabou se corrompendo e desaguou no franco
favorecimento para obtenção de cargos públicos. Segundo o professor
Miguel Reale, em suas memórias: “Como toda sociedade secreta, [a Bucha]
logo se degenerou em cadeia de privilégios, que começava na faculdade
pela seleção dos catedráticos e terminava nos acordos ‘café com leite’
entre ex-alunos de São Paulo e Minas Gerais, sob a batuta do Senador [do Rio Grande do Sul] Pinheiro Machado, também diplomado pelas Arcadas, e que, sutilmente, preferia ser a eminência parda dos eventos republicanos”.
Conchavos
Nos
primeiros 40 anos da República, do governo dos militares Deodoro da
Fonseca e Floriano Peixoto à política do café com leite, bacharéis
formados por uma das duas academias de Direito e membros da Bucha
destacaram-se como ministros ou chefes do Executivo. Dos 14 presidentes
eleitos da República Velha, oito eram da sociedade: Prudente de Morais,
Campos Sales, Rodrigues Alves, Afonso Pena, Venceslau Brás, Artur
Bernardes, Washington Luís e Júlio Prestes, que não chegou a ser
empossado por causa da Revolução de 1930.
Quando a Bucha foi
fundada, no início da década de 1830, também surgiu outra instituição, a
Sociedade Filantrópica, que prestava ajuda a presos e órfãos. Desde
então, a sociedade secreta da Faculdade de Direito sempre esteve ligada a
um “braço” público. Na década de 1910, um deles, a Liga Nacionalista,
aglutinou em sua direção membros da Faculdade de Medicina e da Escola
Politécnica. Estas possuíam também suas próprias organizações
estudantis: a Jungenschaft (União da Mocidade), na Medicina, fundada em 1913, e a Landmannschaft
(sociedade das pessoas de um mesmo campo), na Politécnica, de 1895. O
intercâmbio de alunos de Direito entre São Paulo e Recife acabou por
ocasionar a criação de um braço da Bucha em Pernambuco, a sociedade Tugendbund (União e Virtude).
Com
a Revolução de 1930, que pôs fim à República Velha, chegou ao poder
Getúlio Vargas. Data daí o declínio da Bucha. Adhemar de Barros,
interventor do estado de São Paulo, teria colocado as mãos em uma lista
parcial de membros da Bucha no final dos anos 30 e se apressou a
apresentála a Getúlio. Segundo o político Carlos Lacerda, o presidente
leu atentamente a lista e a devolveu para Adhemar, dizendo: “Não se pode
governar o Brasil sem essa gente, o senhor que entre para a Burschenschaft”.
“Forças ocultas”
Em
1931, quase cem anos após a criação da Bucha, foi fundada a Associação
dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
pelo diplomata José Carlos de Macedo Soares. Segundo Afonso Arinos de
Melo e Franco, Macedo Soares teria sido o último chefe daquela sociedade
secreta, e a associação seria a sucessora final da Bucha.
Mas, e
nos dias de hoje, a Bucha ainda existe? Segundo o historiador Pedro
Brasil Bandecchi, em 1961, “Jânio Quadros teria se referido à Bucha
quando falou de forças ocultas para justificar sua renúncia”. O atual
presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da
USP, José Carlos Madia de Souza, afirma que, em 13 anos como presidente
da entidade, jamais teve conhecimento da continuidade da existência ou
da atuação da Bucha.
Já
o jornalista e escritor Fernando Jorge, ex-aluno da São Francisco e
antigo vice-presidente da Academia de Letras da faculdade, na década de
1950, é de opinião contrária: “Na minha época achava curioso o costume
de alunos mais velhos se encontrarem ao redor do túmulo do Júlio Frank.
Alguns diziam que era ritual da Bucha. Anos mais tarde, na década de 80,
Bandecchi, numa conversa comigo e com o historiador Leonardo Arroyo,
afirmou categoricamente que a Bucha ainda existia”.
Em 2006, a
comunidade da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da Universidade de São Paulo foi surpreendida com cartazes nos
corredores de suas unidades. Nele, uma certa sociedade E.S.P.A.R.T.A.
anunciava a comemoração de seus 50 anos de existência.
A E.S.P.A.R.T.A., segundo rumores, seria um ramo da Burschenschaft
e teria surgido em 1956. Diferentemente dos famosos guerreiros que
morreram na Batalha das Termópilas defendendo sua terra da invasão
persa, essa sociedade secreta era composta de menos que 300 membros. Por
ano, supostamente seriam recrutados 20 alunos. Metade deles, indicados
por membros antigos e que ficariam “em observação” por um ano. Cinco
vagas seriam reservadas para pessoas que solicitassem sua entrada na
sociedade. As demais era reservadas para filhos de antigos membros.
Nascida
na Guerra Fria, o período histórico de 1945 a 1991 marcado por disputas
estratégicas e conflitos indiretos entre Estados Unidos e a extinta
União Soviética, a E.S.P.A.R.T.A. – sempre supostamente – contaria com
um projeto de poder denominado Jano, nome do deus romano representado
por duas ou mais faces, cada qual olhando para uma direção.
Preparando-se para dois cenários mundiais distintos, um com o socialismo
como vencedor e outro com o capitalismo, a sociedade teria formado duas
elites para que seus interesses sobrevivessem em qualquer cenário.
Entre
seus membros, estariam proeminentes figuras acadêmicas, como Perseu
Abramo, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, os dois
primeiros fundadores do PT, e o último, do PSDB. Juntos, esses partidos
têm se mantido há 20 anos no poder. Seus políticos, em alguns momentos,
uniram-se a uma causa comum, como quando o então líder sindical Lula
apoiou a campanha política de FHC para o Senado, em 1978, chegando, até,
a representá-lo em alguns comícios.
SAIBA MAIS
Livros
A Bucha e Outras Reminiscências Maçônicas. Londrina, Luiz Gonzaga da Rocha, A Trolha, 1999
A Sombra de Júlio Frank. Afonso Schmidt, Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP, 2008
Fonte: Aventuras na História.
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