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terça-feira, 18 de novembro de 2014

Ainda Sobre Aleijadinho

Ele deixou marcas nas ruas, nas igrejas e no imaginário dos católicos

Vivi Fernandes de Lima
18/1/2011
 
  • Um risco na madeira pode passar despercebido para muitos desavisados. Mas quando ele inscreve as letras “AFL” na peça de um altar mineiro, causa surpresa. Foi assim que restauradores que trabalhavam na Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Nova Lima, reagiram quando se depararam com uma novidade que estava escondida desde o século XVIII: as iniciais de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, no fundo da parte interna do sacrário de um retábulo (altar lateral). A coordenadora do projeto de restauração realizado pela Escola de Belas Artes da UFMG, Bethânia Veloso, explica o motivo da surpresa: “Eu nunca soube de inscrições desse tipo na obra de Aleijadinho”.
    A descoberta é mais um elemento que aguça a curiosidade de quem contempla a obra, mas, infelizmente, não poderá ser observada pelos visitantes. “É uma inscrição feita na parte interna de um trabalho de Aleijadinho, ou seja, não foi feita para ser vista pelo público”, afirma Bethania. A recuperação, finalizada na última semana de novembro, inclui três retábulos de oito metros de altura e o altar-mor, com 15 metros. Trata-se de um dos maiores conjuntos de esculturas em madeira de Aleijadinho, o mestre do barroco brasileiro. Enquanto visitam a igreja, fiéis contemplam as imagens, chegando a tocá-las, como quem faz um contato direto com Deus. A cena não é um caso isolado; ela é repetida em outras cidades que têm obras de Antônio Francisco Lisboa, como Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, Congonhas, Santa Rita Durão, Barão de Cocais, Caeté, Sabará, São João Del Rei, Catas Altas, Santa Luzia e Raposos.

    Em Ouro Preto, o pintor e pesquisador José Efigênio Pinto Coelho é capaz de sintetizar a importância da obra do artífice em sua vida: “Aleijadinho fez a cara do meu Deus”. Mais do que confirmar a combinação entre arte e religiosidade, seu depoimento mostra o quanto a obra de seu conterrâneo famoso faz parte da cultura da cidade. “É para aquele Cristo com olhos puxados que eu ajoelho e rezo. Quando fui à Europa, vi que o meu Deus não tem a cara das esculturas que estão naquelas igrejas. Não tenho fé naquele barbudão europeu com cara de visigodo. O meu Deus tem cara de barroco mineiro”, confessa Efigênio.

    O pintor pesquisa o legado de Aleijadinho há mais de 40 anos. Ainda criança, como a maioria dos meninos ouropretanos, sabia da importância do artista pelo valor que turistas davam a suas peças. Hoje não é diferente: a popularidade do escultor continua movimentando as cidades históricas mineiras. Ouro Preto, onde a atenção dos visitantes se divide entre Aleijadinho e inconfidentes, recebe cerca de 500 mil turistas por ano. Em Congonhas, onde estão os 12 profetas e os Passos da Paixão, a média é de 64 mil. Este número deve aumentar em 2012, ano previsto para a inauguração do Memorial Congonhas – Centro de Referência do Barroco e Estudos da Pedra, projeto lançado em novembro pelo Iphan, pela prefeitura e pela Unesco.

    O artista barroco é uma referência para estrangeiros e moradores, em especial para artesãos e guias de turismo. Gabriel William Lopes Silva, o Biel, 23 anos, faz esculturas em cedro. Nas paredes de seu ateliê, em Mariana, estão peças que remetem às de Aleijadinho. “Tenho que ter sempre esses anjinhos. Os turistas procuram muito”, diz o artesão, que cobra R$ 1.200 por três anjos emoldurados. Na mesma cidade, o guia de turismo Márcio Bento Alves, 53 anos, exerce a profissão desde os 10 anos. Criou seus cinco filhos com o que recebe de turistas que vão à cidade procurando pelas obras de Aleijadinho. Na alta temporada, chega a tirar uma renda mensal em torno de R$ 3.500,00.

    A feira de artesanato de Ouro Preto tem movimento todos os dias. Miniaturas de igrejas, anjos e porta-retratos são feitos em pedra-sabão, matéria-prima popularizada por Aleijadinho. Enquanto atendem os fregueses, os artesãos manuseiam o formão com desenvoltura, um ofício que é passado de geração em geração. Para o prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, a tradição do entalhe na madeira e na pedra-sabão pode ser associada à raiz barroca de Minas Gerais. “O artista mineiro tem sempre alguma referência barroca que alimenta seu trabalho. Aqui, especialmente nesse universo da arte em pedra-sabão, Aleijadinho é uma baliza”, diz o prefeito.

    Em pedra ou em cedro, a produção do artífice resultou em projetos arquitetônicos, esculturas devocionais e ornamentos que apresentam o que os pesquisadores chamam de estilemas, ou seja, sinais que se repetem nas obras. Olhos amendoados, cabelos cacheados, nariz estreito, fino e longo e boca entreaberta são algumas dessas marcas. O pesquisador Márcio Jardim, autor de Aleijadinho – Catálogo geral da obra, relaciona a existência de 27 sinais.
                    O desenvolvimento artístico do escultor pode ser classificado em fases diferentes de sua vida. Jardim divide suas etapas produtivas em cinco: mocidade (1755 a 1760), maturidade inicial (1761 a 1770), maturidade média (1771 a 1780), maturidade plena (1781 a 1790) e máxima, ou fase de Congonhas (1791 a 1812). Já Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, professora de História e Teoria da Arte da UFRJ e conselheira consultiva do Iphan, faz a divisão em três etapas: as obras iniciais integrariam o período entre 1760 e 1774, a maturidade iria até cerca de 1790 e uma terceira fase, até 1812.

    A diferença de pontos de vista entre pesquisadores dedicados ao tema é uma amostra do quanto é difícil reconhecer a autoria das obras. Assim como outros artífices de sua geração, Antônio Francisco Lisboa não assinava seus trabalhos. Myriam Andrade garante que atribuições a Aleijadinho e a outros artistas de épocas passadas exige conhecimentos específicos – análises técnicas, iconográfica e formal – que são dados nos cursos universitários de História da Arte. “Mas também é necessária muita prática para treinamento do olhar, o que só se consegue ao longo dos anos”, diz a especialista, co-autora de O Aleijadinho e sua oficina – Catálogo de esculturas devocionais, entre outros títulos sobre o mesmo tema.

    Márcio Jardim enumera 425 obras em seus estudos. Para 2010, ele planeja lançar outro livro com mais 45 trabalhos que considera serem do mestre barroco, incluindo peças de 10 novas coleções particulares. Como a maioria das encomendas feitas a Aleijadinho não era acompanhada de recibo – ou, pelo menos, nem todos foram encontrados –, a responsabilidade dos pesquisadores aumenta. Mas esse não é o único “porém”: há quem duvide da documentação existente. “Quando há um recibo de pagamento emitido pela irmandade, por exemplo, normalmente ninguém discute. Mas esse registro pode não ser suficiente, porque naquela época, assim como hoje, havia ‘terceirização’ nas empreitadas”, diz Jardim.

    Se o reconhecimento das obras já indica contradições mesmo quando há escritos da época, a vida de Aleijadinho não fica atrás nesse universo de interrogações. A começar pela data de nascimento: seu batismo, realizado na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Ouro Preto, apresenta o ano de 1730, mas a certidão de óbito diz que foi em 1738. A paternidade também destoa: é o nome de Manoel Francisco da Costa que aparece no batismo, e não o do arquiteto Manuel Francisco Lisboa, que é popularmente reconhecido como o pai. Quanto à doença, em 1964, a Associação Médica de Minas Gerais chegou a discutir a enfermidade do artífice. Hanseníase, escorbuto, acidente vascular cerebral e sífilis foram alguns dos diagnósticos apontados. E se ele era mesmo tão doente, como conseguiu se locomover por diversas cidades mineiras? Para isso contava com escravos – “artigos” de luxo – que o carregavam. Então, por que será que ele morreu pobre? Para responder a essas perguntas, pesquisadores se embrenharam em leituras e observações de suas obras que resultaram em diversos livros. Hoje, as grandes livrarias têm em média 15 títulos sobre Aleijadinho.

    O primeiro escrito que tentou responder a essas questões foi a biografia Traços biográficos relativos ao finado Antonio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho, assinada por Rodrigo José Ferreira Bretas (1814-1866), em 1858. Publicado no Correio Oficial de Minas, de Ouro Preto, o texto foi também o ponto de partida para esclarecer a autoria das obras atribuídas a Aleijadinho. Rodrigo Melo Franco de Andrade, primeiro diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, atual Iphan) e neto de Bretas, escreveu em 1938 sobre o tema, recorrendo a esse estudo. Seu artigo já aponta, no primeiro parágrafo, a existência de questionamentos sobre o artista: “Quando Rodrigo Bretas escrevia sobre Aleijadinho (…) não suspeitava que a autoria das obras que ele atribuía a Antônio Francisco Lisboa viesse a ser algum dia controvertida. Caso lhe ocorresse essa possibilidade, não lhe teria sido muito difícil comprovar as suas asserções, pois abundavam certamente àquele tempo os meios de que precisasse no sentido de documentá-las”.


    Antônio Francisco Lisboa e seus escravos trabalhando em uma oficina, segundo o traço de Seth.Antônio Francisco Lisboa e seus escravos trabalhando em uma oficina, segundo o traço de Seth.
    O artigo de Melo Franco foi uma das iniciativas do Sphan para comprovar as atribuições dadas a Aleijadinho. A instituição – que também tinha Lúcio Costa como incentivador – mobilizou-se enviando assistentes técnicos às cidades mineiras. Os profissionais vasculharam arquivos de irmandades, igrejas e Câmaras, encontrando documentos como recibos, contratos de serviços, despesas com obras, comprovando em vários casos a autoria do artista. Numa coisa todos os pesquisadores concordam: Aleijadinho tinha uma oficina, e como todo grande artista, tinha auxiliares.
      


  • O texto de Bretas se tornou alvo de questionamentos por ocasião da criação do Sphan. O primeiro “tiro” saiu do historiador mineiro Augusto de Lima Júnior (1889-1970) – autor de diversas obras, entre elas O Aleijadinho e a arte colonial –, que combatia as iniciativas de Melo Franco para a preservação das obras e proteção dos documentos históricos referentes a Aleijadinho. Os bastidores das discussões entre os dois intelectuais são confirmados pelo prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, que chegou a dirigir o Iphan de 1985 a 1987. Segundo ele, o desentendimento foi de natureza ideológica, com alguns traços de personalismo da parte de Lima Júnior. “Ele gostaria de ter sido diretor do Iphan. Por isso começou a atribuir a valorização de Aleijadinho a uma mera arrogância de Melo Franco, que queria valorizar a memória do avô, Rodrigo Bretas. Mas Melo Franco foi um homem de profunda acuidade na leitura de obras de arte e documentação histórica”.

    O reconhecimento do artífice como gênio nacional ganhou força com o Modernismo, que buscava as raízes da cultura brasileira. O fato de Aleijadinho ter sido mulato – filho de pai português e mãe escrava – foi, para Mário de Andrade, um dos motivos apontados para o seu esquecimento. “A minha convicção é que o grande arquiteto mineiro foi o maior gênio artístico que o Brasil produziu até hoje. Mas por muitas fatalidades e muita incúria, o nome dele permanece vago na consciência nacional dos brasileiros”, dizia o modernista em artigo publicado em 1928.

    O dito popular “santo de casa não faz milagre” também estava presente nos argumentos de Mário de Andrade: “Só nos compreendemos quando os estranhos nos aceitam”. De fato, depois que o francês Germain Bazin publicou o livro O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil, em 1963, aumentou o interesse de colecionadores pelas obras do artista. Guiomar de Grammont, professora de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e autora do livro Aleijadinho e o aeroplano – o paraíso barroco e a construção do herói colonial, confirma esse fato: “Depois de Germain Bazin, a figura de Aleijadinho se tornou tão conhecida no mundo que todas as cidades mineiras e museus de arte colonial passaram a ter interesse em possuir uma obra desse artista”.

    O livro de Guiomar foi resultado de cinco anos de pesquisa para a tese de doutorado em Literatura defendida na USP em 2002. “A maior parte dos historiadores tomou como verdade absoluta a primeira biografia (de Bretas), escrita para um concurso instituído no século XIX pelo IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). Analisei os documentos e a biografia separadamente, tomando-a como um documento literário, dentro da concepção romântica do século XIX. A vida que o personagem teria tido, porém, segundo os documentos históricos, é muito mais simples e prosaica”, diz a autora.

    Suas constatações provocaram incômodos a historiadores de arte colonial, como a própria escritora ressalta: “Eles haviam passado a vida toda estudando o tema a partir de conceitos como originalidade, estilo e autoria, que o livro mostra serem apenas concepções históricas, passíveis de mudança no tempo e no espaço, e não essências universais”.

    Frederico Birchal de Magalhães Gomes não é historiador, e sim engenheiro aposentado. Mas como cresceu nas cidades de Ouro Preto e Mariana, ficou surpreso com o estudo de Guiomar, que afirma ser a biografia de Bretas “um texto para agradar ao IHGB”, contendo aspectos fantasiosos. “O Iphan republicou a biografia acrescida de 83 notas que basicamente comprovam a veracidade da maioria das informações de Bretas. Foi esta pesquisa que deu grande credibilidade à obra, mostrando que ele foi um pesquisador consciencioso na consulta aos documentos disponíveis da época”, diz Gomes.

    A autora considera um absurdo Aleijadinho ter executado todas as obras que lhe foram atribuídas: “Como sempre, é no texto de Rodrigo Ferreira Bretas que o exagero principia”. Com relação a essa questão, Márcio Jardim é enfático: “É preciso levar em conta que Aleijadinho viveu 84 anos e era mulato. Ele não tinha acesso a serviço público. Se ele ficasse um dia sem trabalhar, não recebia por aquele dia. Também não havia aposentadoria, ele tinha que trabalhar o tempo todo. Ele e seus auxiliares”.

    As polêmicas em torno da vida e da obra de Aleijadinho não param nestas páginas. Cada olhar para uma escultura pode gerar novas perguntas. Por que será que aquele anjo do frontispício da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto é careca? Turistas, moradores e esta repórter perguntam, mas os livros não respondem. Ainda.

    Para amenizar as polêmicas, é possível recorrer àquele que parece ter sido o ponto de partida de todas essas discussões, o texto de Bretas: “Desde que um indivíduo qualquer se torna célebre e admirável em qualquer gênero, há quem, amante do maravilhoso, exagere indefinidamente o que nele há de extraordinário, e das exagerações que se vão sucedendo e acumulando chega-se a compor finalmente uma entidade verdadeiramente ideal. É isto o que, pode-se dizê-lo, até certo ponto aconteceu a Antônio Francisco”.

Fonte:http://www.rhbn.com.br

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