Você já
ouviu essa história? Há mais de 90 anos, o povo armênio quase foi exterminado
pelos turcos. E, até hoje, luta pelo reconhecimento internacional do massacre,
que vitimou 1,5 milhão de pessoas
Yuri Vasconcelos | 15/04/2013
15h57
Era 24 de abril de 1915. Na manhã
daquele Sábado de Aleluia, em meio às comemorações da Páscoa cristã, cerca de
600 intelectuais, políticos e religiosos da comunidade armênia que viviam no
então Império Turco-Otomano, atual Turquia, foram presos sob a acusação de
conspiração e traição. Com a Primeira Guerra Mundial incendiando o planeta, os
turcos, aliados dos alemães, lutavam contra a Tríplice Entente, formada pela
Inglaterra, França e Rússia, e acusaram os armênios de apoiar as tropas
inimigas. Enviados para a prisão de Mehder-Hané, na capital Constantinopla,
hoje Istambul, os líderes armênios acabaram sumariamente executados. Muitos
foram fuzilados e outros enforcados em praça pública. A ação, coordenada pela
cúpula do partido governista Ittihad, conhecido como partido dos Jovens Turcos,
deu início a uma das piores atrocidades da história da humanidade: o genocídio
armênio, um sangrento massacre em que morreram cerca de 1,5 milhão de pessoas.
Estima-se que, naquela época, o Império Otomano abrigava por volta de 2 milhões
de armênios.
Passados mais de 90 anos da
tragédia, muitos historiadores acreditam que o genocídio fez parte de um
processo de limpeza étnica, com a intenção de eliminar o povo armênio. Ou seja,
uma versão turca do Holocausto, que matou, segundo estimativas, entre 2 e 5
milhões de judeus. Os assassinatos foram meticulosamente planejados por um
triunvirato que estava no comando do país, formado por Mehmet Talaat, ministro
do Interior e futuro primeiro-ministro turco, Ismail Enver, ministro da Guerra,
e Ahmed Jemal, ministro da Marinha. Uma série de telegramas, tornados públicos
depois da matança, revelavam detalhes do plano de extermínio. A estratégia era
diversificada, mas a maior parte das vítimas morreu durante longas e penosas
jornadas de deportação que tinham como destino o deserto de Der-El-Zor,
localizado no território sírio, naquela época parte do Império Otomano.
"Os turcos alegavam que os armênios precisavam deixar suas casas por causa
do avanço das tropas da Entente e organizavam caravanas de morte, formadas por
mulheres, crianças e idosos. Muitos levavam a chave de casa, achando que iriam
voltar", diz o professor de geopolítica James Onnig Tamdjian, de 39 anos,
neto de armênios que sobreviveram ao genocídio. "No meio do caminho, os
armênios sofriam abusos. As mulheres eram violentadas, seus filhos raptados e a
maioria morria de fome, sede, doença ou frio. Os poucos que chegavam aos campos
de concentração tinham poucas chances de sobreviver."
Já os homens morriam assassinados
no front de batalha da Primeira Guerra. Se antes eles não podiam nem integrar
as forças armadas turcas, agora haviam sido convocados para se alistar no
Exército. Só que não podiam pegar em armas. "Enquanto cavavam trincheiras,
eram executados pelos próprios soldados otomanos. A convocação para o serviço
militar foi um pretexto para deixar as aldeias desprotegidas", afirma
Tamdjian. Há relatos também de vilas e povoados destruídos, saqueados e
incendiados pelas forças turcas e por milícias apoiadas pelo governo central. E
as atrocidades não paravam por aí. "Muitos armênios foram queimados vivos
nas aldeias. Outras vezes, a tortura consistia em enterrar a vítima até o
pescoço para, logo em seguida, cobrir o rosto com cal virgem ou sal. As jovens
armênias eram vendidas como escravas e as crianças eram encaixotadas vivas e
atiradas no Mar Negro", relata Nubar Kerimian, no livro Massacres de
Armênios. "Os padres também eram queimados amarrados em cruzes, como
Jesus, e os fetos, arrancados dos ventres das mães, jogados para o ar e
aparados na espada."
O genocídio atingiu mais
fortemente as comunidades campesinas e de pequenas localidades da Anatólia, a
região montanhosa que compreende a porção asiática da Turquia moderna. Naquela
época, a Armênia Oriental, atual território da República da Armênia, era
protegida pelos russos, inimigos declarados dos turcos. Nas grandes cidades do
Oeste, como Constantinopla, a presença de estrangeiros inibia os massacres, já
que o governo otomano tentava esconder da comunidade internacional as
atrocidades perpetradas dentro de suas fronteiras. Mesmo assim, as notícias
sobre os massacres acabaram vazando e chegaram ao conhecimento de governantes
de outros países, que condenaram a ação, mas não tomaram medidas para evitar a
matança.
O período mais duro do genocídio
ocorreu entre 1915 e 1918. Quando a Primeira Guerra Mundial chegou ao fim, os
turcos, derrotados, foram forçados a assinar o Tratado de Sèvres, que tornou
independente Síria, Egito, Líbano, Palestina e, também, Armênia. As escaramuças
entre turcos e o povo armênio, no entanto, haviam começado bem antes daquele
sábado da Semana Santa. Entre 1894 e 1896, quando o Império Otomano
encontrava-se em franca desintegração, estima-se que entre 100 mil e 300 mil armênios
tenham sido executados. "Em muitas cidades, propriedades armênias eram
destruídas. Os assassinatos aconteciam durante o dia, presenciados pela
população", diz o historiador Edwin Bliss, autor do livro Turkey and the
Armenian Atrocities (A Turquia e as Atrocidades Armênias, inédito no Brasil).
A justificativa para esses
massacres, ordenados pelo sultão Abdul-Hamid II, foi uma suposta colaboração
armênia com os russos, considerados inimigos do Império. Entre 1877 e 1878, a
Rússia entrou em guerra contra os turcos e saiu vitoriosa, conquistando largas
porções da Armênia Ocidental que estavam sob domínio otomano. Além disso, as
autoridades turcas queriam frear o ímpeto separatista dos armênios, que
reivindicavam a independência. No final dos anos 1880, o movimento nacionalista
ganhou forças e três partidos revolucionários (Armenakan, Hentchakuian e
Federação Revolucionária Armênia) foram formados, fazendo com que Abdul-Hamid
II, em represália, elevasse os impostos sobre a comunidade armênia. "O que
fez com que os armênios apoiassem os russos foram as péssimas condições em que
viviam no Império, onde eram alvos de agressões e tinham direitos limitados.
Esse cenário fez com que eles se armassem e formassem milícias para defender
suas vilas e aldeias", afirma James Tamdjian.
A terceira e última fase das
atrocidades começou em 1920 e estendeu-se por três anos. Depois de desfrutar
dois anos de independência (entre 1918 e 1920), a República da Armênia havia
sido anexada à nascente União Soviética. Desta vez, a violência foi dirigida a
armênios que haviam retornado às suas casas na Anatólia Oriental após o final
da Primeira Guerra Mundial. As execuções, torturas, expulsões e maus-tratos
foram arquitetados e promovidos pelo governo nacionalista de Mustafá Kemal Atatürk,
considerado o pai da Turquia moderna. Em 1923, a população armênia na Turquia
estava restrita à comunidade existente em Constantinopla.
Embora os armênios tenham sido
trucidados pelos turcos, é importante dizer que durante muito tempo esses dois
povos viveram em harmonia. A porção de terra conhecida como Armênia Histórica,
que hoje engloba a República da Armênia e parte da Anatólia (veja mapa na
página ao lado), foi conquistada pelo Império Otomano por volta do ano 1375.
Durante 600 anos, os turco-otomanos formaram um dos mais poderosos impérios do
planeta, que, no seu auge, se estendia pelo norte da África (Argélia, Marrocos,
Egito), Oriente Médio (Líbano, Arábia Saudita, Jordânia, Síria, Palestina,
Pérsia), Rússia e Europa (Grécia, Hungria, Bulgária, Albânia e a região dos
Bálcãs, entre outras). Para manter a unidade e o bom funcionamento do império,
parecido com uma colcha de retalhos, tamanho era o número de povos e etnias que
abrigava, os governantes adotaram um tolerante sistema chamado de millet, termo
turco que quer dizer "comunidade religiosa".
"Cada comunidade religiosa,
como a formada pelos cristãos e pelos judeus, gozava de autonomia e funcionava
como uma nação não-territorial, participando das trocas econômicas com outras
comunidades. Seu líder espiritual era responsável perante ao sultão pelo bom
comportamento dos seus", diz o historiador holandês Peter Demant, autor de
O Mundo Muçulmano. Os armênios, que desde o século 3 adotavam a religião
cristã, formavam um millet. Eles eram considerados bons comerciantes e alguns
integravam a elite do Império.
Então, que motivos levaram o
governo otomano a tanta violência contra uma minoria que vivia em harmonia
dentro do Império? A primeira justificativa foram as aspirações pan-turquistas
(ou pan-turanistas), o sonho otomano de reconstruir uma poderosa nação
integrando os povos de origem turca que viviam espalhados na Ásia Central,
especialmente em regiões do Turcomenistão e Azerbaidjão. Os armênios, por sua
posição geográfica, formavam um enclave bem no meio do caminho. Outra motivação
para o genocídio, negada pela Turquia (veja quadro na página 38), foi a causa
da independência armênia. Há de se ressaltar que, nesta época, o império já
enfrentava a desintegração. Os gregos, por exemplo, já haviam conquistado sua
autonomia em 1812. "Os turcos temiam os armênios por sua capacidade
intelectual e comercial. Cerca de 60% da atividade econômica do Império estava
nas mãos dessa comunidade", diz o historiador Hagop Kechichian, doutor em
história armênia pela Universidade de São Paulo (USP).
Além de causar a morte de milhões
de pessoas e quase exterminar um povo, o genocídio também provocou uma grande
diáspora. Hoje, além da população de 3,5 milhões de pessoas da República da
Armênia, estima-se que cerca de 2,6 milhões de armênios e descendentes vivam na
Federação Russa e na República da Geórgia e pouco mais de 2,5 milhões estejam
espalhados pelo resto do mundo, principalmente nos Estados Unidos, Canadá,
França, Irã, Argentina, Líbano, Síria e Austrália. No Brasil, a comunidade
armênia tem em torno de 60 a 70 mil pessoas. Não importa onde estejam, a luta
dos armênios hoje é uma só: o reconhecimento do genocídio pelo mundo.
"Minha família viveu na
Armênia Ocidental e fez parte das caravanas de deportados. Meu bisavô materno,
antes de escapar para a Síria, presenciou o fuzilamento de três irmãos e do
pai. Sua mãe cometeu suicídio. Eles começaram a chegar na América do Sul em
1923. Nós perdemos tudo e tivemos de recomeçar do zero."
Garbis Bogiatzian, 23 anos,
nascido em São Paulo
"Minha irmã mais velha
morreu de frio durante a fuga da minha famíla para o Líbano. Lembro-me de meus
pais contando histórias terríveis, de pessoas sendo degoladas e de mulheres
grávidas apunhaladas por policiais turcos que arrancavam seus filhos do ventre.
Me recordo de um episódio em que, tentando escapar, alguns conterrâneos
entraram numa igreja e foram barbaramente incendiados."
Arusiak Nersissian, 78 anos,
nascida em Beirute, Líbano
"Durante o genocídio, meu
pai foi separado dos meus avós e enviado para um orfanato. Lá, sofreu abusos.
Quando ficou mais velho, fugiu para a Romênia. Depois, para o Líbano. No
Brasil, chegou no final dos anos 20. Ele não falava a língua e não conhecia
ninguém. Integro o Conselho Nacional Armênio, entidade internacional que luta
pelo reconhecimento das atrocidades contra meu povo."
Simão Kerimian, 59 anos, nascido
em Bela Vista (MS)
Versão turca
A Turquia
admite que houve uma "terrível mortalidade" entre os armênios, mas
nega o genocídio
No mesmo momento em que se
esforça para ingressar na União Européia, a Turquia sofre pressão para
reconhecer as atrocidades cometidas contra o povo armênio. Passados 90 anos da
tragédia, o genocídio só é reconhecido pela França, Austrália, Argentina,
Suécia, Itália, Chipre, Grécia e Uruguai e por organizações internacionais como
o Parlamento Europeu, a Comissão de Direitos Humanos da ONU e o Conselho
Ecumênico das Igrejas. Os armênios, no entanto, não contam com o apoio oficial
dos Estados Unidos, que têm na Turquia o seu mais forte aliado no mundo
muçulmano. O país desempenha um relevante papel no xadrez político global e
abriga bases da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O governo
turco nega que tenha ocorrido um genocídio, apesar de reconhecer que "os
armênios sofreram, sim, uma terrível mortalidade", e afirma que agiu para
garantir a soberania nacional. O país diz ainda que o número de mortos alegados
pelos historiadores é exagerado. "Estudos demográficos provam que antes da
Primeira Guerr Mundial menos de 1,5 milhão de armênios viviam em todo Império
Otomano. Portanto, alegações de que mais do que 1,5 milhão de armênios da
Anatólia Oriental morreram só podem ser falsas", afirma o Ministério das
Relações Exteriores da Turquia. "Se por um lado, existe um imenso e profundo
volume de conhecimento sobre o holocausto, por outro, grande parte da história
do crepúsculo do Império Otomano ainda não foi contada, faltando detalhamento
para que conclusões possam ser tiradas sobre o que realmente aconteceu."
A carnificina
espalhou-se pelo Império Otomano
Monte ararat
O símbolo nacional dos armênios,
local em que os cristãos acreditam ter ancorado a arca de Noé depois do
dilúvio, fica agora em território turco. Da capital armênia Yerevan, onde moram
1,2 milhão de pessoas, é possível avistá-lo.
Rota da morte
O destino final das deportações
era o deserto de Der-El-Zor, hoje Síria e na época parte do Império Otomano.
Estima-se que dos 500 mil armênios deportados, apenas 90 mil tenham
sobrevivido.
Cerco de Van
Era uma das mais prósperas cidades armênias no
início do século passado. Foi cercada pelas tropas turcas e acredita-se que
mais de 50 mil pessoas tenham sido mortas ali. O episódio é retratado no filme
Ararat, do cineasta Atom Egoyan, canadense de origem armênia.
Saiba mais
Livro
Massacre de Armênios, Nubar
Kerimian, Igreja Apostólica Armênia do Brasil, 1988 - Traz fotos do genocídio e
o depoimento de Naim Bei, turco que participou diretamente do massacre.
Sites
www.armenian-genocide.org -
Mapas, dicas de leitura e um esclarecedor FAQ (Frequently Asked Questions)
sobre o genocídio.
www.armenia.com.br/hayk.htm#osa - Apanhado
histórico dos armênios até a atualidade.
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