Zé Sereno e outros três cangaceiros de seu bando, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).
Essa é uma parte do país que por séculos se manteve oculta, um Brasil quase mitológico de tamanha particularidade. À própria sorte desde que se tem notícia, onde o Estado só comparece para cobrar tributos e a escassez está sempre por perto. Cidades e minúsculos distritos são controlados por figuras que muito bem se assemelhariam a senhores feudais, os coronéis, como eram conhecidos, eram autoridade máxima. Autoridade quase sempre incompatível com as péssimas condições de vida do sertão nordestino.
Essa é uma parte do país que por séculos se manteve oculta, um Brasil quase mitológico de tamanha particularidade. À própria sorte desde que se tem notícia, onde o Estado só comparece para cobrar tributos e a escassez está sempre por perto. Cidades e minúsculos distritos são controlados por figuras que muito bem se assemelhariam a senhores feudais, os coronéis, como eram conhecidos, eram autoridade máxima. Autoridade quase sempre incompatível com as péssimas condições de vida do sertão nordestino.
Foi nesse contexto que surgiu o Cangaço. Um
banditismo digno dos clássicos filmes de faroeste, onde
criminosos itinerantes driblavam a lei atravessando fronteiras
estaduais. Sempre acompanhadas de sangue, as histórias do Cangaço
remetem a pessoas muito humildes que, por um motivo ou outro, se
recusaram a seguir a inércia de permanecer sob controle dos coronéis,
optando por um caminho incerto que tratava com especial truculência
aqueles tidos como seus inimigos.
Mas
o Cangaço não possuía apenas inimigos, entre fazendeiros
estrategicamente aliados e outros pobres sertanejos, a opinião pública
se manteve dividida. Se os miseráveis insatisfeitos com os abusos dos
coronéis se sentiam representados na contestação desaforada daqueles
homens e mulheres fora da lei, os frequentes requintes de crueldade e
frieza garantiam o medo e a tensão permanente nas cidades por onde
passavam os bandos de cangaceiros.
Maria Bonita, mulher de Lampião, posa para o fotógrafo libanês Benjamin Abrahão junto aos seus dois cães, Guary e Ligeiro, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).
O poder absoluto dos coronéis no Sertão.
Desde os tempos do Império, a falta de interesse do Estado pelo Sertão
obteve efeitos sangrentos na região. Entre os mais devastadores
episódios de clara resposta à situação negligente e única presença para
cobrança de tributos, destaca-se a Guerra de Canudos e o fenômeno de banditismo conhecido como Cangaço. Ambas as experiências possuíam em sua essência o sentido de contestação das figuras conhecidas como coronéis.
Em meio a uma vasta extensão territorial de pouco interesse público, o Império instituiu a titulação de Coronéis da Guarda Nacional para grandes latifundiários Brasil a dentro. Na prática, o governo passou a legitimar uma relação de domínio que já se fazia efetiva desde os tempos coloniais. Os coronéis eram, quase sempre, pessoas que possuíam total influência na atividade econômica de cidades inteiras. O que representava poder absoluto em uma região onde a opção era se submeter ou sucumbir.
Os coronéis eram homens acima da lei. Além da tradicionais forças policias, também submetidas aos seus interesses, eles tinham sua própria "polícia", eram capangas conhecidos como jagunços: figuras armadas que tratavam de fazer a guarda de terras, castigar e executar inimigos de seus chefes. Foi a truculência desses jagunços que deu origem à jornada de diversos cangaceiros motivados pelo desejo de vingança.
Em meio a uma vasta extensão territorial de pouco interesse público, o Império instituiu a titulação de Coronéis da Guarda Nacional para grandes latifundiários Brasil a dentro. Na prática, o governo passou a legitimar uma relação de domínio que já se fazia efetiva desde os tempos coloniais. Os coronéis eram, quase sempre, pessoas que possuíam total influência na atividade econômica de cidades inteiras. O que representava poder absoluto em uma região onde a opção era se submeter ou sucumbir.
Os coronéis eram homens acima da lei. Além da tradicionais forças policias, também submetidas aos seus interesses, eles tinham sua própria "polícia", eram capangas conhecidos como jagunços: figuras armadas que tratavam de fazer a guarda de terras, castigar e executar inimigos de seus chefes. Foi a truculência desses jagunços que deu origem à jornada de diversos cangaceiros motivados pelo desejo de vingança.
Virgínio Fortunato, cunhado de Lampião,
posa sorridente junto aos "cabras" e mulheres de seu bando para as
lentes de Benjamin Abrahão, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).
A vida criminosa como alternativa à miséria e submissão.
As
condições naturais do Sertão são especialmente infavoráveis à vida
humana. Os longos períodos de estiagem castigam seus habitantes através
dos efeitos consecutivos que a falta d'água produz. O gado morre e as
plantações ficam comprometidas, assim, famílias inteiras tentam se
equilibrar num contexto de subsistência precária. Quando havia oferta de
emprego, ou melhor, de trabalho, ela era ligada ao coronel da região,
figura nem sempre louvável.
"Inteiramente
só, o sertanejo é um homem abandonado a sua própria sorte, nada lhe
resta senão a desesperança. Ou a rebeldia, que é um simples efeito de
causas profundas, da ausência de justiça, analfabetismo, precariedade de
comunicação, baixos salários, débil capitalismo e um lentíssimo
desenvolvimento das forças produtivas."
Pensar
nas autoridades da região como figuras de violência e senso de justiça
similar aos dos temidos cangaceiros faz com que se compreenda melhor
como tantos sertanejos optaram por esse caminho. A vida criminosa não
era nada cordial, mas entre fugas e investidas, oferecia o poder de ter
tudo aquilo que passava longe da realidade da maioria: ouro, respeito e
mulheres (e sobre este último ponto, como é de se imaginar, o estupro era algo recorrente).
Corisco, o primeiro a esquerda, tendo ao seu lado a companheira Dadá e integrantes do seu grupo, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).
O sangrento preço da vida entre os cangaceiros.
Volantes: a polícia especial dos estados treinada com as mesmas práticas dos cangaceiros.
O fim do Cangaço foi causa direta da insatisfação com tamanha desmoralização do Estado Novo causada pelas imagens de Abrahão. Não só como atividade marginal, mas também como exemplo escancarado da corrupção de coronéis colaboradores, o Cangaço era uma afronta a Getúlio Vargas e sua proposta ideológica. E sistematicamente pagou o preço da visibilidade que adquiriu.
O
vermelho é uma cor muito compatível com o trajeto do Cangaço, não
apenas pelo coro de luta ou coragem, mas principalmente pelo sangue. Se
entre os coronéis, representantes da lei no Sertão, a violência já era
evidente, no Cangaço ela era uma assinatura. O traço hediondo da tradicional execução por sangramento era regido pelo punhal, introduzido em pontos vitais de suas vítimas. Para lidar com tamanha rotina, outra característica chamava atenção: a frieza aterrorizante.
Ao passo que se comandava torturas e execuções, as histórias também falam dos cangaceiros como figuras musicais e risonhas. Como se a vida e a morte fosse (e era mesmo) parte do dia-a-dia daquelas pessoas.
Já dizia o mítico Rei do Cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião:
"Três coisas eu trago de Pernambuco: dinheiro, coragem e bala."
Bem como a tradição oral
transmite, em certa ocasião um sujeito estava cometendo incesto e foi
flagrado por Lampião, o cangaceiro separou os dois irmãos e trouxe o
rapaz para conversar. Ele falou para o homem que ele devia colocar os
seus testículos dentro da gaveta e fechar com chave. Em seguida, Lampião
colocou um punhal sobre o criado-mudo e disse "Volto em dez minutos, se você ainda estiver aqui eu te mato".
Assim se construiu uma lenda, e essa é só uma das histórias que se contam até hoje.
O lendário cangaceiro Lampião posa para foto segurando uma edição de um dos jornais que costumava ler, "O Globo", 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).
A opinião pública dividida entre amor e ódio.
Lampião
já era uma lenda viva antes mesmo de sua vida ser documentado pelo
corajoso jornalista Sírio-Libanês, Benjamin Abrahão. Tratado pela
polícia dos estados como uma verdadeira praga a ser exterminada, temido
por onde passava, ainda assim ganhou a simpatia de muita gente. Virgulino
tinha a confiança de gente de diversos setores da sociedade: coronéis,
sertanejos e até mesmo a igreja, representada pelo inigualado Padre
Cícero, a quem se deposita regionalmente o prestígio de uma santidade.
A
situação de considerável apoio da sociedade pode se amparar no senso de
justiça em crítica à força oficial vigente. O respeitado historiador
britânico, Eric Hobsbawn, em uma de suas obras (Bandidos/1969), apontou o Cangaço brasileiro como um exemplo claro do fenômeno do banditismo social, que se alinhava ao princípio de contestação, como um sentido primitivo de revolta.
“O
ponto sobre bandidos sociais é que eles são criminosos camponeses a
quem o senhor feudal e o Estado enxergam como criminosos, mas que
permanecem dentro da sociedade camponesa, e são considerados por seu
povo como heróis, como campeões, vingadores, lutadores pela justiça,
talvez até mesmo líderes de libertação e, em qualquer caso, homens para
serem admirados, ajudados e apoiados. Esta relação entre o camponês comum e o rebelde, bandido e ladrão é o que faz o banditismo social interessante e significativo.”
Eric Hobsbawn
Volantes do estado da Bahia em registro de Benjamin Abrahão, circa 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).
Volantes: a polícia especial dos estados treinada com as mesmas práticas dos cangaceiros.
Por
décadas a República simplesmente amargou a inferioridade de suas forças
diante do preparo e conhecimento preciso dos bandos cangaceiros.
Equipados com cangas de madeira e utensílios metálicos (daí o
nome cangaço: canga+aço), esses grupos eram compostos por homens (e
também, muito raramente, mulheres) de invejável experiência de combate,
sempre furtivos e ágeis.
Nas
cidadelas invadidas, a polícia costumava ser ínfima e sem a menor
condição para impedir investidas tão bem articuladas. Quando chegava
algum reforço capaz de enfrentá-los, os cangaceiros simplesmente
desapareciam em rotas de fuga que os levavam para outros estados, onde
somente as forças policiais correspondentes poderiam atuar.
A reação dos estados foi precisa: responder na mesma moeda. Foram constituídas as chamadas forças volantes, o braço cangaceiro da polícia,
formadas por homens (alguns deles até ex-cangaceiros) de preparo e
práticas de combate idênticas às dos bandos criminosos. Assim, rotas de
fuga, abrigos e investidas furtivas estavam mais sujeitas a falhas.
O encontro de Abrahão com o bando de Virgulino,
em foto tirada pelo cangaceiro Juriti. Da esquerda para a direita: Vila
Nova, não identificado, Luís Pedro, Benjamin Abrahão (à frente),
Amoroso, Lampião, Cacheado (ao fundo), Maria Bonita, não identificado,
Quinta-Feira, foto de 1936. (Acervo Abafilm).
O jornalista libanês que documentou a vida dos cangaceiros.
Figura responsável pelos mais preciosos registros iconográficos do Cangaço, Benjamin Abrahão Botto conheceu de perto, por vários meses, a rotina de diversos bandos cangaceiros,
inclusive os dos notáveis Corisco e Lampião. Ele foi por muitos anos
secretário de Padre Cícero em Juazeiro do Norte, no interior do Ceará,
até que com a morte do sacerdote em 1934, colocou em prática seu projeto
mais ambicioso: filmar e fotografar Lampião e seu bando.
Se aproveitando da ligação de Lampião com Padre Cícero, Abrahão facilmente se aproximou do cangaceiro. Lampião
era uma figura extremamente vaidosa, característica que o consolidava
como Rei do Cangaço, se deixando acompanhar pelo jornalista. O
material coletado ao longo de cerca de 2 anos (1936 e 1937) era de
extrema preciosidade e foi recebido nas grandes metrópoles como um
verdadeiro escândalo. O Cangaço era uma ofensa ao Estado Novo de Getúlio Vargas, que tratou de censurar e confiscar o registro de Benjamin.
“As fotos e filmes de Benjamim eram um atestado da incompetência das forças policiais e uma afronta ao Palácio do Catete”
Frederico Pernambucano de Mello
O Sírio-Libanês Benjamin Abrahão trouxe a público relatos detalhados
sobre a rotina e características dos bandos cangaceiros, o que pode ter
sido nocivo à estratégia dos bandos, cada vez mais combatidos em esfera
interestadual. Em menos de três anos a maior parte dos principais bandos foi desmantelada, inclusive com a execução de Lampião (1938) e Corisco (1940). O próprio Benjamin também teve seu fim em 1938 (dois meses antes da morte de Lampião e seu bando), vítima de nada menos que 42 facadas em um assassinato até hoje não esclarecido.
Segundo o historiador Frederico Pernambucano de Mello, a mesma força
que matou Lampião, matou Benjamin: o desmoralizado Estado Novo.
“Antes
que o Estado Novo espatifasse o sistema de poder do sertão, era alto
negócio para qualquer fazendeiro comercializar com o cangaceiro. O
Estado Novo acabou com esse colaboracionismo. A morte de Benjamin foi, sobretudo, uma queima de arquivo histórica.”
Frederico Pernambucano de Mello
Cangaceiro Barreira posa junto à cabeça de seu ex-companheiro de bando, Atividade, como prova de lealdade à volante.
Um cerco que se fechava: a falência dos bandos e o fortalecimento do combate ao cangaço.
Com
o passar dos anos, a forma que o Estado tratava o Cangaço era cada vez
mais madura. A segunda metade dos anos 1930 foi especialmente difícil
para os bandos cangaceiros. Um a um, os criminosos iam sucumbindo ou se
entregando em troca da anistia. O marco do fim dos tempos do Cangaço foi a emboscada que executou Lampião, Maria Bonita e diversos membros de seu bando. Suas cabeças foram expostas ao público em muitas cidades do Sertão nordestino.
“Naquela época, Lampião mobilizava grossos capitais.
Travava com coronéis da região que financiavam seus roubos e recebiam
parte do lucro. Seu bando era a imagem do sucesso da organização fora da
lei."
Frederico Pernambucano de Mello
O fim do Cangaço foi causa direta da insatisfação com tamanha desmoralização do Estado Novo causada pelas imagens de Abrahão. Não só como atividade marginal, mas também como exemplo escancarado da corrupção de coronéis colaboradores, o Cangaço era uma afronta a Getúlio Vargas e sua proposta ideológica. E sistematicamente pagou o preço da visibilidade que adquiriu.
Cadáver
do cangaceiro Cirilo de Engrácia, morto por civis e usado como exemplo
pela volante alagoana. A cabeça de Cirilo já havia sido decepada, foi
recolocada para a foto. 1935. (Autor desconhecido/Acervo Sociedade do Cangaço).
Cabeças cortadas de membros do bando de Lampião,
incluindo o próprio e sua parceira, Maria Bonita, mortos em uma
emboscada em Porto da Folha, Sergipe. Elas foram expostas como troféu na
escadaria da Prefeitura de Piranhas, no estado de Alagoas, este
episódio simbolizou o fim dos tempos áureos do Cangaço. Foto de 1938
(Autor desconhecido/Acervo Sociedade do Cangaço).
Cabeças dos cangaceiros expostas em Santana do Ipanema/AL, 1938. (Autor desconhecido/Acervo Sociedade do Cangaço).
O médico legista Charles Pittex segura as cabeças mumificadas de Lampião e Maria Bonita, elas ficaram expostas por muitos anos na Faculdade de Medicina da Bahia, foto de 1939. (Autor desconhecido).
Fontes:
http://www.historiailustrada.com.br
HOBSBAWM, E.J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.MELLO, Frederico Pernambucano. Guerreiros do sol – violência e banditismo no nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.
http://cebes.com.br/2014/07/a-historia-do-odio-no-brasil-por-fred-di-giacomo/
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=1472857&tit=O-cangaco-segundo-Graciliano-Ramos
http://acervo.oglobo.globo.com/fotogalerias/a-morte-de-lampiao-9394818
http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/um_sertanejo_das_arabias.html
http://www.ufrgs.br/gthistoriaculturalrs/marcosclemente.html
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,iconografia-do-cangaco-traz-revelacoes-sobre-lampiao,869874
http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/sobrecultura/2013/05/entre-deus-e-o-diabo-1
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL703549-5598,00-CONHECA+AS+SEIS+PRINCIPAIS+LENDAS+SOBRE+LAMPIAO.html
Bruno Henrique Brito Lopes
HOBSBAWM, E.J. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.MELLO, Frederico Pernambucano. Guerreiros do sol – violência e banditismo no nordeste do Brasil. São Paulo: A Girafa Editora, 2004.
http://cebes.com.br/2014/07/a-historia-do-odio-no-brasil-por-fred-di-giacomo/
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http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL703549-5598,00-CONHECA+AS+SEIS+PRINCIPAIS+LENDAS+SOBRE+LAMPIAO.html
Bruno Henrique Brito Lopes
Graduando em História pela Universidade Católica de Pernambuco.
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