A índia Malinche, Bilíngue, ajudou os espanhóis a se comunicar com os nativos. Apontada como uma das responsáveis pelo extermínio dos astecas, no México seu nome ainda é sinônimo de palavrão
Flávia Ribeiro | 27/05/2009 01h54
Em 1519, um navio espanhol aportou em Tabasco, na costa do golfo
do México. Seus ocupantes, todos estrangeiros, receberam dos nativos
diversos presentes de boas-vindas. Pães, frutas, aves, ouro e pedras
semipreciosas foram entregues aos desconhecidos navegantes. Entre os
regalos estavam 20 mulheres escravas. Elas deveriam preparar-lhes a
comida e, claro, prestar outros favores que tornariam sua vida ali mais
agradável. Inclusive sexuais. Entre as escravas, uma virou polêmica.
Fluente em maia e asteca, a moça serviu de intérprete para os
estrangeiros e os ajudou na comunicação com os índios locais. Chegou a
ter um filho com um dos europeus. O mestiço Martín é considerado o
primeiro "mexicano" da história. Malinche, seu nome, continua a ser
considerada uma traidora, espécie de Judas de sua nação. Seu
envolvimento, afinal, foi com Hernán Cortés, o homem que destruiu o
Império Asteca e deu início ao extermínio do povo de sua própria amante.
Pouco se sabe sobre Malinche, citada apenas duas vezes nas cartas que Hernán Cortés escreveu para o rei espanhol Carlos I. Acredita-se que ao nascer, por volta de 1496, tenha sido chamada de Malinalli, nome de uma erva que, trançada, era usada para fazer roupas, e também de um dos dias do calendário da época, exatamente aquele em que ela nasceu. Era uma índia nahua, uma das diversas etnias que compunham o México pré-colombiano, provavelmente de Xalixco, na divisa entre o Império Asteca e estados maias. Francisco López de Gómara, que escreveu em 1552 Historia de las Indias, conta que a menina era filha de pais ricos, mas que foi sequestrada ainda criança e vendida para índios de ascendência maia, de Xicalango. Eles a teriam passado para o povo de Tabasco até ela ser dada para os espanhóis.
Há outra versão, contada em 1560 pelo conquistador espanhol Bernal Díaz del Castillo, que acompanhou Cortés e escreveu La Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España. Segundo ele, os pais da índia eram caciques em uma cidade chamada Paynala. Após a morte de seu pai, a mãe teria se casado com outro cacique e tido um filho com o novo marido. Para que o bebê tivesse direito à herança, o casal resolveu dar a filha mais velha para os índios de Xicalango. Assim, ela teria aprendido tanto o idioma maia quanto o náuatle, a língua asteca. Habilidades que a tornariam indispensável para Hernán Cortés.
O BATISMO DO MITO
Malinche virou Marina após o encontro com os espanhóis. Ela e dela, pois acreditaram que os chamava para matá-los, e choravam. E, assim como os viu chorar, dona Marina os consolou e disse que não tivessem medo, que quando a entregaram aos xicalangos não sabiam o que faziam, e os perdoava, e lhes deu muitas joias, ouro e roupas, e disse que voltassem a seu povoado", escreveu Díaz. "Dona Marina tinha muita personalidade e do espanhol. No fim, eles não foram de serventia alguma, já que não conheciam os idiomas locais. Mas a experiência mostrou aos colonizadores a necessidade de treinar intérpretes. Assim, segundo Gorges L. Bastin, professor de linguística e tradução da Universidade de Montreal, no Canadá, e autor de um estudo sobre tradutores no Novo Mundo, Colombo levou dez nativos de volta para a Europa para que pudessem aprender a cultura e a língua espanholas, política mantida em expedições seguintes, como a de Américo Vespúcio, em 1499. O próprio Hernán Cortés, além de Malinche e Jerónimo de Aguilar, teve, no começo, a ajuda de Orteguita, um garoto mexicano que checava se as palavras que Malinche traduzia correspondiam mesmo ao que o espanhol havia dito. Espanhóis treinavam pessoas para conseguirem comunicar-se com nativos do Novo Mundo.
As 19 outras escravas oferecidas aos conquistadores foram as primeiras pessoas batizadas na América. Após o ritual, ganharam nomes cristãos. A índia foi chamada de Marina e, sem conseguir pronunciar o "r", aos poucos foi sendo transformada em Malintzin. Por sua vez, os espanhóis, com dificuldade para falar como os índios, passaram a chamá-la de Malinche.
Jerônimo de Aguiar, um religioso espanhol que naufragara por aquelas bandas provavelmente em 1511 e falava náuatle, era o intérprete oficial de Cortés. Quando descobriram que Malinche falava maia, ela começou a ser usada para fazer Cortés entender o que os povos daquela origem falavam. Ela ouvia as frases em maia, passava para o asteca e Aguillar fazia a tradução do asteca para o espanhol. De tanto fazer isso, a jovem logo aprendeu o espanhol e ganhou nova alcunha: era agora "a Língua", aquela que intermediava a comunicação entre os indígenas e os recém-chegados. A escrava começou a ganhar importância, a ponto de se tornar amante de Cortés e ter um filho com ele, Martín.
Por suas habilidades linguísticas, Malinche passou a ser usada nas operações de conquista por Cortés, que a infiltrava em várias tribos. Ela inclusive esteve presente no primeiro encontro entre o espanhol e Montezuma II, o imperador asteca, um momento decisivo na história mexicana, em 8 de novembro de 1519. Também foi graças a ela que Cortés conseguiu se comunicar com diversos outros índios.
Numa de suas andanças, a índia reencontrou a mãe e o irmão mais novo. Bernal Díaz conta que, após a chegada dos espanhóis à tribo, os parentes de Malinche foram batizados. A mãe passou a se chamar Marta e o irmão, Lázaro. Ele era o cacique da tribo, assim como o pai fora. Ao reconhecerem Malinche, a mãe e o irmão ficaram apreensivos. "Tiveram medo dela, pois acreditaram que os chamava para matá-los, e choravam. E, assim como os viu chorar, dona Marina os consolou e disse que não tivessem medo, que quando a entregaram aos xicalangos não sabiam o que faziam, e os perdoava, e lhes deu muitas joias, ouro e roupas, e disse que voltassem a seu povoado", escreveu Díaz. "Dona Marina tinha muita personalidade e autoridade absoluta sobre os índios de toda a Nova Espanha." Malinche foi, na época da conquista, apresentada pelos cronistas como uma mulher poderosa a ponto de fazer um cacique e sua mãe chorarem de medo. E piedosa na medida em que perdoava os abandonos passados. Mais que isso: era uma senhora respeitada e influente. Mas sua imagem mudou muito com o tempo.
ESPANHÓIS X ASTECAS
Pouco se sabe sobre Malinche, citada apenas duas vezes nas cartas que Hernán Cortés escreveu para o rei espanhol Carlos I. Acredita-se que ao nascer, por volta de 1496, tenha sido chamada de Malinalli, nome de uma erva que, trançada, era usada para fazer roupas, e também de um dos dias do calendário da época, exatamente aquele em que ela nasceu. Era uma índia nahua, uma das diversas etnias que compunham o México pré-colombiano, provavelmente de Xalixco, na divisa entre o Império Asteca e estados maias. Francisco López de Gómara, que escreveu em 1552 Historia de las Indias, conta que a menina era filha de pais ricos, mas que foi sequestrada ainda criança e vendida para índios de ascendência maia, de Xicalango. Eles a teriam passado para o povo de Tabasco até ela ser dada para os espanhóis.
Há outra versão, contada em 1560 pelo conquistador espanhol Bernal Díaz del Castillo, que acompanhou Cortés e escreveu La Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España. Segundo ele, os pais da índia eram caciques em uma cidade chamada Paynala. Após a morte de seu pai, a mãe teria se casado com outro cacique e tido um filho com o novo marido. Para que o bebê tivesse direito à herança, o casal resolveu dar a filha mais velha para os índios de Xicalango. Assim, ela teria aprendido tanto o idioma maia quanto o náuatle, a língua asteca. Habilidades que a tornariam indispensável para Hernán Cortés.
O BATISMO DO MITO
Malinche virou Marina após o encontro com os espanhóis. Ela e dela, pois acreditaram que os chamava para matá-los, e choravam. E, assim como os viu chorar, dona Marina os consolou e disse que não tivessem medo, que quando a entregaram aos xicalangos não sabiam o que faziam, e os perdoava, e lhes deu muitas joias, ouro e roupas, e disse que voltassem a seu povoado", escreveu Díaz. "Dona Marina tinha muita personalidade e do espanhol. No fim, eles não foram de serventia alguma, já que não conheciam os idiomas locais. Mas a experiência mostrou aos colonizadores a necessidade de treinar intérpretes. Assim, segundo Gorges L. Bastin, professor de linguística e tradução da Universidade de Montreal, no Canadá, e autor de um estudo sobre tradutores no Novo Mundo, Colombo levou dez nativos de volta para a Europa para que pudessem aprender a cultura e a língua espanholas, política mantida em expedições seguintes, como a de Américo Vespúcio, em 1499. O próprio Hernán Cortés, além de Malinche e Jerónimo de Aguilar, teve, no começo, a ajuda de Orteguita, um garoto mexicano que checava se as palavras que Malinche traduzia correspondiam mesmo ao que o espanhol havia dito. Espanhóis treinavam pessoas para conseguirem comunicar-se com nativos do Novo Mundo.
As 19 outras escravas oferecidas aos conquistadores foram as primeiras pessoas batizadas na América. Após o ritual, ganharam nomes cristãos. A índia foi chamada de Marina e, sem conseguir pronunciar o "r", aos poucos foi sendo transformada em Malintzin. Por sua vez, os espanhóis, com dificuldade para falar como os índios, passaram a chamá-la de Malinche.
Jerônimo de Aguiar, um religioso espanhol que naufragara por aquelas bandas provavelmente em 1511 e falava náuatle, era o intérprete oficial de Cortés. Quando descobriram que Malinche falava maia, ela começou a ser usada para fazer Cortés entender o que os povos daquela origem falavam. Ela ouvia as frases em maia, passava para o asteca e Aguillar fazia a tradução do asteca para o espanhol. De tanto fazer isso, a jovem logo aprendeu o espanhol e ganhou nova alcunha: era agora "a Língua", aquela que intermediava a comunicação entre os indígenas e os recém-chegados. A escrava começou a ganhar importância, a ponto de se tornar amante de Cortés e ter um filho com ele, Martín.
Por suas habilidades linguísticas, Malinche passou a ser usada nas operações de conquista por Cortés, que a infiltrava em várias tribos. Ela inclusive esteve presente no primeiro encontro entre o espanhol e Montezuma II, o imperador asteca, um momento decisivo na história mexicana, em 8 de novembro de 1519. Também foi graças a ela que Cortés conseguiu se comunicar com diversos outros índios.
Numa de suas andanças, a índia reencontrou a mãe e o irmão mais novo. Bernal Díaz conta que, após a chegada dos espanhóis à tribo, os parentes de Malinche foram batizados. A mãe passou a se chamar Marta e o irmão, Lázaro. Ele era o cacique da tribo, assim como o pai fora. Ao reconhecerem Malinche, a mãe e o irmão ficaram apreensivos. "Tiveram medo dela, pois acreditaram que os chamava para matá-los, e choravam. E, assim como os viu chorar, dona Marina os consolou e disse que não tivessem medo, que quando a entregaram aos xicalangos não sabiam o que faziam, e os perdoava, e lhes deu muitas joias, ouro e roupas, e disse que voltassem a seu povoado", escreveu Díaz. "Dona Marina tinha muita personalidade e autoridade absoluta sobre os índios de toda a Nova Espanha." Malinche foi, na época da conquista, apresentada pelos cronistas como uma mulher poderosa a ponto de fazer um cacique e sua mãe chorarem de medo. E piedosa na medida em que perdoava os abandonos passados. Mais que isso: era uma senhora respeitada e influente. Mas sua imagem mudou muito com o tempo.
ESPANHÓIS X ASTECAS
A
ajuda dos povos dominados e a superioridade técnica, com armas mais
poderosas e o domínio da pólvora, são duas das possíveis razões para a
queda do Império Asteca diante de Hernán Cortés e seus homens. Outra
teoria diz respeito aos deuses, que tinham enorme importância naquela
sociedade – o que pode explicar a fácil rendição do imperador Montezuma
diante do invasor num momento interpretado por ele como o fim de um
ciclo, cercado de profecias que apontavam para a volta do deus
Quetzalcoatl para retomar seu reino. Montezuma teria enxergado Cortés
como o próprio Quetzalcoatl. Como a teoria fatalista não seria
compartilhada por todos os astecas, a rendição do imperador não foi bem
aceita – e ele foi morto com uma pedrada de origem incerta.
Cortés teve de enfrentar o novo imperador, Cuauhtémoc, que não aceitava o domínio estrangeiro. Aí entrou a superioridade tática: "Cortés contraria a chamada 'guerra florida' dos astecas, uma espécie de balé com hora marcada, em vez da emboscada, por exemplo", diz Leandro Karnal, professor de História da Unicamp e autor de Teatro da Fé – Representação Religiosa no Brasil e no México do século XVI. "Com isso, em 13 de agosto de 1521, Tenochtitlán [a capital do império] cai. Cortés foi um homem hábil politicamente, muito carismático, que soube arregimentar a simpatia dos índios."
Malinche tornou-se fundamental para os planos do conquistador porque, como diz Bernal, "Cortés, sem ela, não podia entender os índios". Apesar da importância estratégica e de ser mãe do filho do espanhol, Malinche foi novamente entregue. Dessa vez, por Cortés para um companheiro de expedição, Juan Jaramillo. Ela se casou, ganhou a liberdade e teve uma filha, Maria. Não se sabe quando Malinche morreu – acredita-se que foi em 1529, mas algumas fontes falam em 1551.
Mais de três séculos depois de sua morte, o filósofo e lingüista Tzvetan Todorov afirmou em seu livro A Conquista da América: "É verdade que a conquista do México teria sido impossível sem ela". Todorov destacava a importância da linguagem em todo o processo de domínio da civilização asteca e dos povos ao redor por Cortés. E explicava, assim, a dimensão que o nome de Malinche tomou no país.
Não só sua imagem mudou ao longo dos séculos, mas também a importância atribuída a ela. "Na época da conquista, ela era respeitada. Não foi só tradutora e amante, tinha influência", afirma Leandro Karnal. "Depois da independência, o México construiu a identidade do asteca como ancestral de sua nacionalidade, como um povo feliz, o que é uma visão romântica. Então ela vira a traidora. Sua imagem só começa a ser reabilitada nos anos 80, quando a importância da comunicação, da mulher e dos aliados indígenas cresce nas análises históricas."
Houve muita violência na conquista da América. Mas o que alguns especialistas contestam hoje é que a chamada "visão romântica" nega o outro lado: a crueldade dos astecas com os povos dominados, que incluía uma enormidade de sacrifícios humanos em nome dos deuses. "A figura do espanhol não foi vista como a de conquistador num primeiro momento, por isso tantos povos se uniram a ele. Cortés liderou um exército de indígenas, Malinche não era a única ao seu lado", afirma o historiador José Alves de Freitas Neto, da Unicamp.
Para Todorov, a índia que ajudou a Espanha a dominar o México "anuncia o estado atual de todos nós, inevitavelmente bi ou triculturais". O problema é que a mistura que Malinche representa é vista até hoje como impura em seu país, atrelado ao passado romântico. Com isso, a população não reconhece nela o que Octavio Paz chama de "Eva mexicana" – ou a mãe simbólica de todo um povo.
Cortés teve de enfrentar o novo imperador, Cuauhtémoc, que não aceitava o domínio estrangeiro. Aí entrou a superioridade tática: "Cortés contraria a chamada 'guerra florida' dos astecas, uma espécie de balé com hora marcada, em vez da emboscada, por exemplo", diz Leandro Karnal, professor de História da Unicamp e autor de Teatro da Fé – Representação Religiosa no Brasil e no México do século XVI. "Com isso, em 13 de agosto de 1521, Tenochtitlán [a capital do império] cai. Cortés foi um homem hábil politicamente, muito carismático, que soube arregimentar a simpatia dos índios."
Malinche tornou-se fundamental para os planos do conquistador porque, como diz Bernal, "Cortés, sem ela, não podia entender os índios". Apesar da importância estratégica e de ser mãe do filho do espanhol, Malinche foi novamente entregue. Dessa vez, por Cortés para um companheiro de expedição, Juan Jaramillo. Ela se casou, ganhou a liberdade e teve uma filha, Maria. Não se sabe quando Malinche morreu – acredita-se que foi em 1529, mas algumas fontes falam em 1551.
Mais de três séculos depois de sua morte, o filósofo e lingüista Tzvetan Todorov afirmou em seu livro A Conquista da América: "É verdade que a conquista do México teria sido impossível sem ela". Todorov destacava a importância da linguagem em todo o processo de domínio da civilização asteca e dos povos ao redor por Cortés. E explicava, assim, a dimensão que o nome de Malinche tomou no país.
Não só sua imagem mudou ao longo dos séculos, mas também a importância atribuída a ela. "Na época da conquista, ela era respeitada. Não foi só tradutora e amante, tinha influência", afirma Leandro Karnal. "Depois da independência, o México construiu a identidade do asteca como ancestral de sua nacionalidade, como um povo feliz, o que é uma visão romântica. Então ela vira a traidora. Sua imagem só começa a ser reabilitada nos anos 80, quando a importância da comunicação, da mulher e dos aliados indígenas cresce nas análises históricas."
Houve muita violência na conquista da América. Mas o que alguns especialistas contestam hoje é que a chamada "visão romântica" nega o outro lado: a crueldade dos astecas com os povos dominados, que incluía uma enormidade de sacrifícios humanos em nome dos deuses. "A figura do espanhol não foi vista como a de conquistador num primeiro momento, por isso tantos povos se uniram a ele. Cortés liderou um exército de indígenas, Malinche não era a única ao seu lado", afirma o historiador José Alves de Freitas Neto, da Unicamp.
Para Todorov, a índia que ajudou a Espanha a dominar o México "anuncia o estado atual de todos nós, inevitavelmente bi ou triculturais". O problema é que a mistura que Malinche representa é vista até hoje como impura em seu país, atrelado ao passado romântico. Com isso, a população não reconhece nela o que Octavio Paz chama de "Eva mexicana" – ou a mãe simbólica de todo um povo.
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